sábado, 16 de fevereiro de 2008

ABC do repórter marginal

O jornalista e escritor Guilherme Azevedo tem um livro que é uma aula de jornalismo contada em forma de romance. São 15 histórias, todas tendo como personagem o repórter Alencar Almeida e pano de fundo o fictício jornal A Verdade, dirigido por um certo Rosebud, numa alusão à palavra final pronunciada por Charles Foster Kane no filme de Orson Welles. Por uma boa história, Alencar Almeida rasga manuais de redação e desafia chefes. Confira o "ABC do repórter marginal", de Guilherme Azevedo:

Avante, jovem repórter!
Vá com fé no seu caminho
Com a pauta do coração
Largue essa aí no escaninho
Dicas de plástica? Não!
Basta de assunto daninho

Bendito o seu destino
Sempre avesso ao disparate
De falar sempre do rico
De Mileide, socialate
Se lá na Cohab não há
Dinheiro nem para o mate

Cuidado com o editor
Do que será que ele ri?
Será sorriso sincero
Ou mais fino bisturi?
Que corta a ânsia de justiça
Qual facão pobre siri

Deixe a sua Musa o guiar
Acredite em seus sentidos
Se a sua alma disser que sim
Siga até de olhos cerzidos
A pauta boa já ressoa
Está no ar, em seus ouvidos

Escreva sobre o sem-voz
O largado à própria sorte
Sobre quem vira manchete
Apenas na hora da morte
Louvando quem bem merece
Ferindo ladrão de porte

Fuja dessa redação
Jornalismo sem a rua
É pura adivinhação
É só em foto ver a lua
Propaganda de cosmético
Viagem em furada falua

Golpeie, só se necessário
Sua palavra, sua arma
De fino grosso calibre
O amor à Justiça, seu darma
Sua guerra, sua calma
A insatisfação, seu carma

Hoje, anteontem, amanhã
No seu caminho imutável
Sempre em busca da poesia
Na trilha do indispensável
Do fútil tem alergia
Acha o novo desconfiável

Incorruptível eterno
Pois não valoriza a grana
Nem carro, luxo ou cargo
De sua convicção emana
Doce aroma, clara chama
Ao leitor jamais engana

Jornalista que se preza
Pois trabalho é sacerdócio
Pelo bem da maioria
Com a pena não faz negócio
Texto não é moeda de troca
Nem momento de ser dócil

Lide, prisão do bom texto
Sêmen da esterilidade
Eles dizem que é ciência
Para chegar à verdade
Mas você, repórter, sabe
Que é pura comodidade

Meça toda a sua cidade
Ande muito, muito a pé
Ouça a voz que vem das dores
O grito mudo, sem fé
Jamais duvide do choro
Da Maria pelo Zé

Namore a sua realidade
Ela lhe espera lá fora
Ela lhe sorri, o chama
Reclama, por você implora
Não dê uma de cego, surdo
Olhe a Primavera que aflora

Oriente-se pelo céu
Seu amor, astronomia
Guie-se também pelo chão
Sua certeza, geografia
Seu sonho gira feito astro
Sua ação reta como guia

Prepare-se para o não
Para muita, muita pedra
E não tema, pois diz Tao
Palavra sábia, bem vedra:
O universo favorece
Os bons, a eles sempre medra

Quimera, ali é o seu reino
Onde reencontra igualdade
Jornalismo, amor, poesia
Sua suma Santa Trindade
Mas qual! Que triste surpresa!
Abre o olho, é só falsidade!

Realidade, exemplo da
Melhor grande reportagem
Jornalismo com poesia
O povo sem maquilagem
Texto com profundidade
Escrito após muita aragem

Ser a cada dia mais simples
Sábio, correto e sensível
É o único objetivo
Apalavrando o indizível
Emocionando a razão
Tingindo o supravisível

Todas as formas, palavras
Sentimentos, sensações
Todos os ritmos, períodos
As vozes, interjeições
Jornalirismo: aqui pode
Tudo, menos restrições

Umbrosos tornaram os campos
Mas brilhante o seu fino aço
Curvilíneos os caminhos
Mas retilíneo o seu traço
Estreitas as parcas sendas
Mas ampla a chã, seu regaço

Virtuose em descobrir almas
Em revelar na entrevista
O melhor que há de cada um
Sempre garimpa a ametista
Onde tantos só acham breu
Do real é fiel retratista

Xeque-mate, match point
Na falsa neutralidade
Jornalista tem sim lado
É fraude a sinceridade?
Boa a verdade do patrão?
Chega de passividade

Zéfiro traz a Boa Nova
Vem aí outro jornalismo
Bem mais humano, mais real
Repórter salvo do abismo
De volta ao centro da rua
Vida sem ilusionismo.

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