sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Faroeste Caboclo

Legião Urbana
Renato Russo

Não tinha medo o tal João de Santo Cristo,
Era o que todos diziam quando ele se perdeu.
Deixou pra trás todo o marasmo da fazenda
Só pra sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu.
Quando criança só pensava em ser bandido,
Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu
Era o terror da sertania onde morava
E na escola até o professor com ele aprendeu.

Ia pra igreja só prá roubar o dinheiro
Que as velhinhas colocavam na caixinha do altar.
Sentia mesmo que era mesmo diferente
Sentia que aquilo ali não era o seu lugar
Ele queria sair para ver o mar
E as coisas que ele via na televisão
Juntou dinheiro para poder viajar
De escolha própria, escolheu a solidão

Comia todas as menininhas da cidade
De tanto brincar de médico, aos doze era professor.
Aos quinze, foi mandado pro o reformatório
Onde aumentou seu ódio diante de tanto terror.

Não entendia como a vida funcionava
Discriminação por causa de sua classe ou sua cor
Ficou cansado de tentar achar resposta
E comprou uma passagem, foi direto a Salvador.

E lá chegando foi tomar um cafezinho
E encontrou um boiadeiro com quem foi falar
E o boiadeiro tinha uma passagem e ia perder a viagem
Mas João foi lhe salvar.

Dizia ele: - Estou indo pra Brasília,
Neste país lugar melhor não há.
Estou precisando visitar a minha filha
Eu fico aqui e você vai no meu lugar.

E João aceitou sua proposta e num ônibus entrou no Planalto Central
Ele ficou bestificado com a cidade
Saindo da rodoviária, viu as luzes de Natal.
- Meu Deus,mas que cidade linda,
No Ano-Novo eu começo a trabalhar.
Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro
Ganhava cem mil por mês em Taguatinga.

Na sexta-feira ia pra zona da cidade
Gastar todo o seu dinheiro de rapaz trabalhador
E conhecia muita gente interessante
Até um neto bastardo do seu bisavô:
Um peruano que vivia na Bolívia
E muitas coisas trazia de lá
Seu nome era Pablo e ele dizia
Que um negócio ele ia começar.

E o Santo Cristo até a morte trabalhava
Mas o dinheiro não dava pra ele se alimentar
E ouvia às sete horas o noticiário
Que sempre dizia que o seu ministro ia ajudar
Mas ele não queria mais conversa e decidiu que,
Como Pablo, ele ia se virar
Elaborou mais uma vez seu plano santo
Sem ser crucificado, a plantação foi começar.

Logo logo os maluco da cidade souberam da novidade:
- Tem bagulho bom ai!
E João de Santo Cristo ficou rico
E acabou com todos os traficantes dali.
Fez amigos, freqüentava a Asa Norte
E ia pra festa de rock, pra se libertar
Mas de repente
Sob uma má influência dos boyzinho da cidade
Começou a roubar.

Já no primeiro roubo ele dançou
E pro inferno ele foi pela primeira vez
Violência e estupro do seu corpo
- Vocês vão ver, eu vou pegar vocês.

Agora o Santo Cristo era bandido
Destemido e temido no Distrito Federal.
Não tinha nenhum medo de polícia
Capitão ou traficante, playboy ou general.
Foi quando conheceu uma menina
E de todos os seus pecados ele se arrependeu.
Maria Lúcia era uma menina linda
E o coração dele
Pra ela o Santo Cristo prometeu
Ele dizia que queria se casar
E carpinteiro ele voltou a ser
- Maria Lúcia pra sempre vou te amar
E um filho com você eu quero ter.

O tempo passa e um dia vem na porta um senhor de alta classe com dinheiro na mão
E ele faz uma proposta indecorosa e diz que espera uma resposta.
Uma resposta do João:
- Não boto bomba em banca de jornal nem em colégio de criança isso eu não faço não
E não cortejo general de dez estrelas, que fica atrás da mesa
Com o cu na mão.
E é melhor senhor sair da minha casa
Nunca brinque com um Peixes de ascendente Escorpião.
Mas antes de sair, com ódio no olhar, o velho disse:
- Você perdeu sua vida, meu irmão.

Você perdeu a sua vida meu irmão. Você perdeu a sua vida meu irmão
Essas palavras vão entrar no coração
Eu vou sofrer as conseqüências como um cão.
Não é que o Santo Cristo estava certo
Seu futuro era incerto e ele não foi trabalhar
Se embebedou e no meio da bebedeira descobriu que tinha outro
Trabalhando em seu lugar
Falou com Pablo que queria um parceiro
E também tinha dinheiro e queria se armar
Pablo trazia o contrabando da Bolívia e Santo Cristo revendia em Planaltina.

Mas acontece que um tal de Jeremias, traficante de renome,
Apareceu por lá
Ficou sabendo dos planos de Santo Cristo
E decidiu que, com João ele ia acabar.
Mas Pablo trouxe uma Winchester-22
E Santo Cristo já sabia atirar
E decidiu usar a arma só depois
Que Jeremias começasse a brigar.

(O Jeremias, maconheiro sem-vergonha, organizou a Rockonha
E fez todo mundo dançar.)

Desvirginava mocinhas inocentes
Se dizia que era crente mas não sabia rezar.

E Santo Cristo há muito não ia pra casa
E a saudade começou a apertar
- Eu vou me embora, eu vou ver Maria Lúcia
Já tá em tempo de a gente se casar.

Chegando em casa então ele chorou
E pro inferno ele foi pela segunda vez
Com Maria Lúcia Jeremias se casou
E um filho nela ele fez.

Santo Cristo era só ódio por dentro e então o Jeremias prum duelo ele chamou
Amanhã às duas horas na Ceilândia, em frente ao lote 14, é pra lá que eu vou
E você pode escolher as suas armas que eu acabo mesmo com você, seu porco traidor
E mato também Maria Lúcia, aquela menina falsa pra quem jurei o meu amor

E o Santo Cristo não sabia o que fazer
Quando viu o repórter da televisão
Que deu notícia do duelo na TV
Dizendo a hora e o local e a razão.

No sábado então, às duas horas, todo o povo
Sem demora foi lá só para assistir
Um homem que atirava pelas costas e acertou o Santo Cristo
Começou a sorrir.
Sentindo o sangue na garganta,
João olhou pras bandeirinhas e pro povo a aplaudir
E olhou pro sorveteiro e pras câmeras e
A gente da TV que filmava tudo ali.

E se lembrou de quando era uma criança e de tudo o que vivera até ali
E decidiu entrar de vez naquela dança
- Se a via-crucis virou circo, estou aqui.

E nisso o sol cegou seus olhos e então Maria Lúcia ele reconheceu.
Ela trazia a Winchester-22
A arma que seu primo Pablo lhe deu.

- Jeremias, eu sou homem. coisa que você não é.
E não atiro pelas costas não.
Olha pra cá filha-da-puta, sem-vergonha,
Dá uma olhada no meu sangue
E vem sentir o teu perdão.

E Santo Cristo com a Winchester-22
Deu cinco tiros no bandido traidor
Maria Lúcia se arrependeu depois
E morreu junto com João, seu protetor.

E o povo declarava que João de Santo Cristo era santo porque sabia morrer
E a alta burguesia da cidade não acreditou na história que eles viram na TV
E João não conseguiu o que queria quando veio pra Brasília, com o diabo ter
Ele queria era falar pro presidente,
Pra ajudar toda essa gente
Que só faz...

Sofrer...

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Furo de reportagem e microblogs

Já superamos a era dos blogs, como instrumento de divulgação de idéias e trabalhos. Como a evolução da internet, a onda agora vem com os microblogs, blogs atualizados com textos curtos (no máximo 140 caracteres) muitas vezes diretamente do telefone celular. Os mais mais conhecidos e utilzados são Twitter, Jaiku e Pownce, que abrigam informações como tempo, trânsito e outros. Funciona como um diário veloz e prático, gerando inclusive coberturas jornalísticas. A pergunta no momento é: os microblogs vão substituir as outras mídias numa seara que parecia extinta, o "furo de reportagem"?.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Microblogs e o futuro do jornalismo

O Twitter está revolucionando o jornalismo? Há muita conversa na internet sobre isso, inclusive em blogs de professores e estudiosos do assunto. Falando sério, não dá pra fazer pré-julgamentos nessa área. O sucesso dos microblogs hospedados no site durante o grande incêndio na Califórnia e o aumento da procura agora nas primárias americanas não pode servir de referência. Twitter e seus similares são, na verdade, mensageiros instantâneos como o MSN, com a qualidade extra de colocar na web todas as "conversas" do autor. Voltarei ao assunto...

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Informação fria só enche barriga

Houve uma época em que o jornalismo abrigava poetas e escritores como Machado de Assis e José do Patrocínio. Nem é preciso ir muito longe no tempo. Aqui em Salvador, João Ubaldo Ribeiro trabalhou no Jornal da Bahia. Há muito outros nomes, que não vou citar para não correr o risco de esquecer algum. Basta o exemplo de JUR. O fato é que a profissão foi se tornando cada vez mais técnica e especializada. O post anterior, com o poema do jornalista Chiko Kuneski, é na verdade uma carta da poesia ao jornalista que deixou de ser poeta, sem viço, sem paixão, sem nada. Endurecemos e perdemos a ternura, fomos corroídos pela tecnologia. Raramente um texto de jornal faz o leitor vibrar, rir, chorar. Mas não seria essa a função primordial do jornalista? Informação fria é como culinária pra encher barriga. Não dá prazer como um bom prato preparado com tesão.

Carta da poesia ao poeta

Chiko Kuneski

O tesão já se foi
O prazer se esvai a cada tentativa
Desescrevemo-nos
O desejo mútuo se foi
Até eu já me fui
Sem nos darmos conta
Ambos fazemos de conta
Que ainda estou contigo
Mas,
Olha ao teu redor
Olha ao nosso redor
Vazio
Esquecido de tudo
Presta atenção nas palavras
Já não estamos mais juntos
Escrevemo-nos sempre iguais
Nos mesmos versos
Sem retruques, ou reversos,
Ou...
Reinventarmos
Presta atenção
Olha ao teu redor
Estamos quadrados

Do blog Bloguesia - poesia e jornalismo

Amor é fogo que arde sem se ver

Luís de Camões

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Livro e exemplos de Jornalismo Flash

Para quem quer saber mais sobre Jornalismo Flash, há um livro, Flash journalism (em inglês), que pode ser baixado e oferece muita informação sobre essa tendência que já é chamada de "a quarta geração do web jornalismo". É a libertação total do modelo de página inventado junto com a prensa de Gutembergue. Clarín, da Argentina, e El País, da Espanha, são exemplos de portais de notícias que utilizam pesado essa ferramenta.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Sou pobre, sou mendigo, e sou ditoso!

Baixe o livro (PDF)
Vagabundo
Álvares de Azevedo

Eu durmo e vivo no sol como um cigano,
Fumando meu cigarro vaporoso,
Nas noites de verão namoro estrela;
Sou pobre, sou mendigo, e sou ditoso!
Ando roto, sem bolsos nem dinheiro;
Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas,
E quem vive de amor não tem pobreza.
Não invejo ninguém, nem ouço a raiva
Nas cavernas do peito, sufocante,
Quando à noite na treva em mim se entornam
Os reflexos do baile fascinante.
Namoro e sou feliz nos meus amores;
Sou garboso e rapaz... Uma criada
Abrasada de amor por um soneto
Já um beijo me deu subindo a escada...
Oito dias lá vão que ando cismado
Na donzela que ali defronte mora.
Ela ao ver-me sorri tão docemente!
Desconfio que a moça me namora!..
Tenho por meu palácio as longas ruas;
Passeio a gosto e durmo sem temores;
Quando bebo, sou rei como um poeta,
E o vinho faz sonhar com os amores.
O degrau das igrejas é meu trono,
Minha pátria é o vento que respiro,
Minha mãe é a lua macilenta,
E a preguiça a mulher por quem suspiro.
Escrevo na parede as minhas rimas,
De painéis a carvão adorno a rua;
Como as aves do céu e as flores puras
Abro meu peito ao sol e durmo à lua.
Sinto-me um coração de lazzaroni;
Sou filho do calor, odeio o frio;
Não creio no diabo nem nos santos.
Rezo à Nossa Senhora, e sou vadio!
Ora, se por aí alguma bela
Bem doirada e amante da preguiça
Quiser a nívea mão unir à minha
Há de achar-me na Sé, domingo, à Missa.

Em Música e Poesia

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Jornalismo relâmpago não é Flash

E por falar em multimídia, o novo jornalismo online que começa a ser praticado nos melhores websites incorpora apresentações cada vez mais sofisticadas, com o uso de novos softwares. Paginação dinâmica, animações, interatividade, áudio, vídeo e o escambau! Os neófitos da internet chegam a confundir aquilo com televisão. Mas vai muito além: estamos nos primórdios do Jornalismo Flash, não flash traduzido do inglês (relâmpago), mas a tecnologia que permite essa revolução de participação de usuários (outra neologia no jornalismo que substitui a palavra leitor). Mas há aí dois problemas: exigência de computadores mais atualizados e pessoal especializado para produzir as animações! Alguém sabe onde tem um curso de Flash?

Jornalistas, jornal, tv, internet e videogame

Há poucos dias uma repórter fez uma afirmação que me deixou daquele jeito que a gente fica quando não sabe se parte pra briga ou simplesmente releva e deixa pra lá. Preparando um "off" para uma reportagem de web tv, ela disse que aquilo não era pra ela: "Eu optei pelo jornal porque não gosto de televisão". Santos católicos e do candomblé! Será que vai sobrar algum espaço para os que pensam que a comunicação do futuro pode ser feita em compartimentos estanques como jornal, tv, rádio, web ou o que mais inventem? Sem querer comparar pessoas e profissionais com objetos, mas já comparando, imagine uma vitrine de delicatessen cheia de guloseimas. Há duas muito parecidas, com morandos e creme, mas uma delas é enriquecida com ferro, vitaminas A, B e C. Qual você pegaria? Voltando à vaca fria, no instante em que ouvi a afirmação da jovem jornalista não parti pra briga. Fiz o pior: fiquei calado, afinal era o final de uma jornada estafante de 7 horas. Foi uma omissão imperdoável. Deveria ter recomendado a troca de profissão à colega, porque, quando ela tiver metade do tempo que tenho de profissão, daqui a uma dezena de anos, só terá duas opções: mudar de ramo ou passar a gostar de televisão, rádio, web, videogame...

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Fidel e o Brasil: "Aqui é que deveríamos ter feito a nossa Revolução!"

Ainda na entrevista de 2004 a Geneton Moraes Neto, Guillermo Cabrera Infante relata uma viagem com Fidel Castro em que este cita o Brasil: ''Uma das pessoas com quem tive uma enorme decepção depois de vê-lo pela televisão e pelos jornais foi Fidel Castro. Tivemos contato íntimo. Em abril de 59, fomos a Washington, Nova Iorque, Montreal e ao Brasil, antes de seguirmos para Montevideu e Buenos Aires. A intimidade de estar num avião para apenas vinte pessoas em companhia de Fidel Castro durante tantos dias me convenceu de que aquele indivíduo era um horror. Era um avião de hélice. Em direção ao Rio, o avião baixou para que víssemos a floresta amazônica.O piloto disse : 'Comandante,estamos voando sobre a floresta!'. Eu estava sentado no banco logo atrás de Fidel Castro. O que foi que aconteceu? Fidel ficou olhando a floresta não sei por quanto tempo. De repente, disse : 'Que grande país!'. Eu pensava que era admiração pelo Brasil. Mas ele disse :'Aqui é que deveríamos ter feito a nossa Revolução!'''

Cabrera Infante sobre Fidel: "Você não acha que já chega?"

A renúncia de Fidel Castro, uma espécie de morte sem cadáver, faz-me rememorar o escritor cubano Guillermo Cabrera Infante (foto), que morreu em fevereiro de 2006 exilado em Londres. Na época, vários artigos afirmaram que o ditador havia vencido a queda de braço com seu opositor. Como se a boa literatura não perdurasse ao autor. Uma frase de "Mea Cuba" é bem um retrato de Cabrera Infante, que nos primórdios da revolução havia dirigido o conselho de cultura da ilha: “Numa incrível reviravolta hegeliana, Cuba tinha dado um grande salto em frente – mas tinha caído para trás.” A luta do escritor cubano contra a tirania de Fidel gerou um antagonismo entre ele e Gabriel Garcia Márquez, ao ponto de classificar "Cem anos de solidão" de "livro folclórico". Numa entrevista em 2004 ao jornalista Geneton Moraes Neto, provocado por este sobre um hipotético e ao estilo de Garcia Márquez encontro com Fidel Castro num aeroporto, Cabrera Infante foi incisivo: "Eu só diria uma frase : 'Você não acha que já chega?'''

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Reportagem passiva e crise das mídias

A imprensa brasileira tornou-se, nos últimos 15 anos, uma espécie de antena retransmissora de frases dos poderosos. Claro que há exceções, mas o que assusta no caso é que a regra tem sido essa. Veja a última viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Antártica. Os repórteres que acompanharam a excusão limitaram-se a reproduzir, sempre de longe, as frases que sua excelência queria dizer. Em nenhum momento houve uma entrevista formal. Mas o problema ocorre também no âmbito de funcionários públicos de coturno muito mais baixo. Há alguns dias, um rapaz com frascos de lança perfume no carro invadiu um posto e atropelou um frentista. Foi detido pelos funcionários e entregue à polícia, que o soltou sem mais nem menos. O delegado em nenhum momento foi questionado sobre o porquê de não ter aplicado a lei. Afinal, posse de lança perfume ainda é considerado tráfico de drogas (ou não?), o que permitiria a prisão em flagrante. A passividade da reportagem é um fenômeno que está inserido, como seu inverso, a acusação gratuita e sensacionalista, no processo de crise das mídias com o conseqüente foco na redução de custos.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

E o seu nível de corrupção, como vai?

Millôr Fernandes

Dizem por ai que todo homem tem seu preço. Há quem vá mais longe afirmando que alguns homens são vendidos a preço de banana. Sempre esperei, na vida, o dia da Grande Corrupção, e confesso, decepcionado, que ele nunca veio. A mim só me oferecem causas meritórias, oportunidades de sacrifício, salvações da Pátria ou pura e frontalmente a hedionda tarefa de lutar.. . contra a corrupção. Enquanto eu procuro desesperadamente uma oportunidade, as pessoas e entidades agem comigo de tal forma que às vezes chego a duvidar de que a corrupção exista. Mas, falar em corrupção, como anda a sua? Vendendo saúde ou combalida e atrofiada como a minha? Responda com muito cuidado às perguntas abaixo e depois conclua sobre sua própria personalidade: você é um corrupto total ou um idiota completo? (Não há meio-termo.) Conte 10 pontos para cada resposta certa (você é quem decide qual é a certa) e verifique depois o grau de sua corruptibilidade. Nota: Se você roubar neste teste, é porque sua corrupção é mesmo absolutamente incorruptível.

A) Você descobre que o chefe do seu departamento está com um caso complicado com a secretária do outro chefe em frente. Você: 1) Finge que não viu nada. 2) Diz à secretária que ou também está, nessa ou vai botar a boca no mundo. 3) Oferece o seu sítio ao chefe pra ele passar o fim de semana. 4) Bota a boca no mundo. 5) Insinua ao chefe que há a perigosa hipótese de a mulher dele vir a saber (e enquanto isso põe a promoção embaixo do nariz dele pra ele assinar).

B) Você acha que a Lei e a Ordem é uma mística social maravilhosa para: 1) Impor a lei e a ordem. 2) Acabar com a grita dos descontentes. 3) Grandes oportunidades de ganhar algum por fora. 4) Dividir o bolo entre os íntimos sem ninguém de fora piar.

C) A primeira vez em que você ouviu falar do escândalo de Watergate você disse: 1) Isso é que é país! 2) Como é que o governo americano permite uma imprensa dessas? Isso desmoraliza um país! 3) Eu não compraria um carro usado desse Nixon. 4) Isso jamais aconteceria entre nós. 5) Quanto terão levado esses caras pra se arriscarem dessa maneira?

D) Você, como representante oficial da fiscalização, comparece à apresentação de contas, em dinheiro, no Instituto dos Cegos. Fica surpreendido com o alto volume das arrecadações e em certo momento: 1 ) Diz : "Estou surpreendido com a miserabilidade dos donativos". E tenta enrustir algum. 2) Diz: "Como representante do fisco sou obrigado a reter 30 % de tudo porque esta arrecadação é totalmente ilegal". 3) Diz: "Teria sido até uma boa arrecadação se metade das notas não fossem falsas". 4) Disfarça bem a voz e diz, entredentes: "Todos quietinhos aí, seus Homeros de uma figa: Isto é um assalto!"

E) Você se demite do cargo de maneira irrevogável por insuportáveis pressões morais e absoluta impossibilidade de compactuar com a presente política da firma. Eles prometem triplicar o seu salário. Você: 1) Recusa, indignado, por pensarem que é tudo uma questão de dinheiro. Só ficará se eles derem também as três viagens anuais à Europa a que todos os diretores têm direito. E participação nos lucros retidos da companhia. 2) Diz que, evidentemente, isso e uma prova moral de que eles estão de acordo com você. O dinheiro, aí é definitivo como demonstração de confiança na sua gestão. 3) Pede para pensar 5 minutos antes de dar a resposta. 4) Explica que tem mulher e filhos e não pode manter um pedido de demissão feito, afinal de contas, por motivos tão irrelevantes.

F) Há uma diferença fundamental entre fraudar e evitar o imposto de renda. Quando você descobriu isso, você: 1) Ficou indignado com as possibilidades de os poderosos usarem tudo a seu favor. Como é que se pode escamotear um ordenado? 2) Começou a estudar furiosamente a legislação para descobrir todos os furos. 3) Tinha 11 anos de idade e estava terminando o curso primário. 4) Nunca mais pagou um tostão de imposto.

G) Você dá um nota de 10 pra pagar o jornal, no jornaleiro velhinho da banca da esquina, e percebe que ele lhe deu 50 como troco. Você imediatamente: 1) Corrige o erro do velhinho? 2) Reclama chateado aproveitando a gagaíce do vendedor: "Pô, eu lhe dei uma nota de 100?" 3) Chega em casa e manda todos os seus filhos comprarem vários jornais? 4) Bota o dinheiro no bolso e fica freguês?

H) Você teve que fazer um trabalho na rua, não pôde almoçar, comeu um sanduíche. Você apresenta a conta na companhia: 1) Um sanduíche — 3 cruzeiros. 2) Almoço — 32 cruzeiros. 3) Almoço com o representante da A&F Ltda. — 79 cruzeiros. 4) Despesas gerais — 143 cruzeiros.

I) Quando o desfalque dado pelo auditor geral (8.000.000 pratas) chega a seus ouvidos você murmura: 1) "Idiota, se deixar apanhar assim". 2) "Será que eles vão descobrir também os meus 10.000?". 3) "Se ele tivesse me dado 10% eu tinha feito o negócio de maneira que ninguém nunca ia descobrir". 4) "Eu fiz bem em não entrar no negócio".

Conselho de amigo:
Quando alguém, na rua, gritar "Pega ladrão!", finge que não é com você.


Texto extraído do livro "Todo homem é minha caça", Editorial Nórdica Ltda. — Rio de Janeiro, 1981, pág.60.

Apelo a Meus Dessemelhantes em Favor da Paz

Carlos Drummond de Andrade

Ah, não me tragam originais
para ler, para corrigir, para louvar
sobretudo, para louvar.
Não sou leitor do mundo nem espelho
de figuras que amam refletir-se
no outro à falta de retrato interior.
Sou o Velho Cansado
que adora o seu cansaço e não o quer
submisso ao vão comércio da palavra.
Poupem-me, por favor ou por desprezo,
se não querem poupar-me por amor.
Não leio mais, não posso, que este tempo
a mim distribuído
cai do ramo e azuleja o chão varrido,
chão tão limpo de ambição
que minha só leitura é ler o chão.
Nem sequer li os textos das pirâmides
os textos dos sarcófagos,
estou atrasadíssimo nos gregos,
não conheço os Anais de Assurbanipal,
como é que vou -
mancebos,
senhoritas,
-chegar à poesia de vanguarda
e às glórias do 2.000, que telefonam?
Passam gênios talvez entre as acácias,
sinto estátuas futuras se moldando
sem precisão de mim
que quando jovem (fui-o a.C.,
believe or not)
nunca pulei muro de jardim
para exigir do morador tranqüilo
a canonização do meu estilo.
Sirvam-se de exonerar este macróbio
do penoso exercício literário.
Não exijam prefácios e posfácios
ao ancião que mais fala quando cala.
Brotos de coxa flava e verso manco,
poetas de barba-colar e velutínea
calça puída, verde: tá!
Outoniços, crepusculinos, matronas, contumazes:
tá!
O senhor saiu. Hora que volta? Nunca.
Nunca de corvo, nunca de São-Nunca.
Saiu pra não voltar.
Tudo esqueceu: responder
cartas; sorrir
cumplicemente; agradecer
dedicatórias; retribuir
boas-festas; ir ao coquetel e à noite
de autógrafos-com-pastorinhas.
Ficou assim: o cacto de Manuel
é uma suavidade perto dele.
Respeitem a fera. Triste, sem presas, é fera.
Na jaula do mundo passeia a pata aplastante,
cuidado com ela!
Vocês, garotos de colégio, não perguntem ao poeta
quando ele nasceu.
Ele não nasceu.
Não vai nascer mais.
Desistiu de nascer quando viu que o esperavam garotos de colégio de lápis em punho
com professores na retaguarda comandando: Cacem o urso-polar,
tragam-no vivo para fazer uma conferência.
Repórteres de vespertinos, não tentem entrevistá-lo.
Não lhe, não me peçam opinião
que é impublicável qualquer que seja o fato do dia
e contraditória e louca antes de formulada.
Fotógrafos: não adianta
pedir pose junto ao oratório de Cocais
nem folheando o álbum de Portinari
nem tomando banho de chuveiro.
Sou contra Niepce, Daguerre, contra principalmente minha imagem.
Não quero oferecer minha cara como verônica nas revistas.
Quero a paz das estepes
a paz dos descampados
a paz do Pico de Itabira quando havia Pico de Itabira
a paz de cima das Agulhas Negras
a paz de muito abaixo da mina mais funda e esboroada
de Morro Velho
a paz
da
paz

Sobre novos jornalistas, Drummond e Balzac

Nas redações tem pululado um tipo de jornalista novato que pensa saber tudo do mundo, imagina ter sido gerado num mundo novo e superior ao passado. Nariz empinado, recita, em ritmo de hemorragia, conhecimentos lastreados por uma pesquisa rápida no google.com. O tipo acredita que faz alguma coisa muito importante. Para eles, só uma transfusão urgente de Carlos Drummond de Andrade:
"Minha vida? Acho que foi pouco interessante. O que é que eu fui? Fui um burocrata, um jornalista burocratizado. Não tive nenhum lance importante na minha vida. Nunca exerci um cargo que me permitisse tomar uma grande decisão política ou social ou econômica. Nunca nenhum destino ficou dependendo da minha vida ou do meu comportamento ou da minha atitude".
Por falar no poeta, ele acreditava que o jornalismo era um tipo de literatura, mas Balzac (de novo o francês!), sempre maniqueísta como o mundo humano, reduzia o jornalismo a uma "degeneração" da literatura.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

ABC do repórter marginal

O jornalista e escritor Guilherme Azevedo tem um livro que é uma aula de jornalismo contada em forma de romance. São 15 histórias, todas tendo como personagem o repórter Alencar Almeida e pano de fundo o fictício jornal A Verdade, dirigido por um certo Rosebud, numa alusão à palavra final pronunciada por Charles Foster Kane no filme de Orson Welles. Por uma boa história, Alencar Almeida rasga manuais de redação e desafia chefes. Confira o "ABC do repórter marginal", de Guilherme Azevedo:

Avante, jovem repórter!
Vá com fé no seu caminho
Com a pauta do coração
Largue essa aí no escaninho
Dicas de plástica? Não!
Basta de assunto daninho

Bendito o seu destino
Sempre avesso ao disparate
De falar sempre do rico
De Mileide, socialate
Se lá na Cohab não há
Dinheiro nem para o mate

Cuidado com o editor
Do que será que ele ri?
Será sorriso sincero
Ou mais fino bisturi?
Que corta a ânsia de justiça
Qual facão pobre siri

Deixe a sua Musa o guiar
Acredite em seus sentidos
Se a sua alma disser que sim
Siga até de olhos cerzidos
A pauta boa já ressoa
Está no ar, em seus ouvidos

Escreva sobre o sem-voz
O largado à própria sorte
Sobre quem vira manchete
Apenas na hora da morte
Louvando quem bem merece
Ferindo ladrão de porte

Fuja dessa redação
Jornalismo sem a rua
É pura adivinhação
É só em foto ver a lua
Propaganda de cosmético
Viagem em furada falua

Golpeie, só se necessário
Sua palavra, sua arma
De fino grosso calibre
O amor à Justiça, seu darma
Sua guerra, sua calma
A insatisfação, seu carma

Hoje, anteontem, amanhã
No seu caminho imutável
Sempre em busca da poesia
Na trilha do indispensável
Do fútil tem alergia
Acha o novo desconfiável

Incorruptível eterno
Pois não valoriza a grana
Nem carro, luxo ou cargo
De sua convicção emana
Doce aroma, clara chama
Ao leitor jamais engana

Jornalista que se preza
Pois trabalho é sacerdócio
Pelo bem da maioria
Com a pena não faz negócio
Texto não é moeda de troca
Nem momento de ser dócil

Lide, prisão do bom texto
Sêmen da esterilidade
Eles dizem que é ciência
Para chegar à verdade
Mas você, repórter, sabe
Que é pura comodidade

Meça toda a sua cidade
Ande muito, muito a pé
Ouça a voz que vem das dores
O grito mudo, sem fé
Jamais duvide do choro
Da Maria pelo Zé

Namore a sua realidade
Ela lhe espera lá fora
Ela lhe sorri, o chama
Reclama, por você implora
Não dê uma de cego, surdo
Olhe a Primavera que aflora

Oriente-se pelo céu
Seu amor, astronomia
Guie-se também pelo chão
Sua certeza, geografia
Seu sonho gira feito astro
Sua ação reta como guia

Prepare-se para o não
Para muita, muita pedra
E não tema, pois diz Tao
Palavra sábia, bem vedra:
O universo favorece
Os bons, a eles sempre medra

Quimera, ali é o seu reino
Onde reencontra igualdade
Jornalismo, amor, poesia
Sua suma Santa Trindade
Mas qual! Que triste surpresa!
Abre o olho, é só falsidade!

Realidade, exemplo da
Melhor grande reportagem
Jornalismo com poesia
O povo sem maquilagem
Texto com profundidade
Escrito após muita aragem

Ser a cada dia mais simples
Sábio, correto e sensível
É o único objetivo
Apalavrando o indizível
Emocionando a razão
Tingindo o supravisível

Todas as formas, palavras
Sentimentos, sensações
Todos os ritmos, períodos
As vozes, interjeições
Jornalirismo: aqui pode
Tudo, menos restrições

Umbrosos tornaram os campos
Mas brilhante o seu fino aço
Curvilíneos os caminhos
Mas retilíneo o seu traço
Estreitas as parcas sendas
Mas ampla a chã, seu regaço

Virtuose em descobrir almas
Em revelar na entrevista
O melhor que há de cada um
Sempre garimpa a ametista
Onde tantos só acham breu
Do real é fiel retratista

Xeque-mate, match point
Na falsa neutralidade
Jornalista tem sim lado
É fraude a sinceridade?
Boa a verdade do patrão?
Chega de passividade

Zéfiro traz a Boa Nova
Vem aí outro jornalismo
Bem mais humano, mais real
Repórter salvo do abismo
De volta ao centro da rua
Vida sem ilusionismo.

Leminski e a existência do amor bastante

Venus e Marte, de Sandro Botticelli

Amor Bastante
Paulo Leminski

quando eu vi você
tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante

basta um instante
e você tem amor bastante

um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto

Leminski e o elogio da inutilidade

O poeta Paulo Leminski (24 de agosto de 1944-7 de junho de 1989) fez também teoria literária. O livro Ensaios Crípticos, de1986, reúne textos sobre poesia, arte e literatura. Foi organizado a quatro mãos com a poeta Alice Ruiz, sua ex-mulher. Um dos textos do livro é o "Inutensílios", sobre a dicotomia entre a arte e a poesia e a sociedade pequeno-burguesa:

A ditadura da utilidade
"A burguesia criou um universo onde todo gesto tem que ser útil. Tudo tem que ter um para quê, desde que os mercadores, com a Revolução Mercantil, Francesa e Industrial, substituíram no poder aquela nobreza cultivadora de inúteis heráldicas, pompas não rentábeis e ostentosas cerimônias intransitivas. Parecia coisa de índio. Ou de negro. O pragmatismo de empresários, vendedores e compradores, mete preço em cima de tudo. Porque tudo tem que dar lucro. Há trezentos anos, pelo menos, a ditadura da utilidade é unha e carne com o lucrocentrismo de toda essa nossa civilização. E o princípio da utilidade corrompe todos os setores da vida, nos fazendo crer que a própria vida tem que dar lucro. Vida é o dom dos deuses, para ser saboreada intensamente até que a Bomba de Nêutrons ou o vazamento da usina nuclear nos separe deste pedaço de carne pulsante, único bem de que temos certeza."

Além da utilidade
" O amor. A amizade. O convívio. O júbilo do gol. A festa. A embriaguez. A poesia. A rebeldia. Os estados de graça. A possessão diabólica. A plenitude da carne. O orgasmo. Estas coisas não precisam de justificação nem de justificativas.
Todos sabemos que elas são a própria finalidade da vida. As únicas coisas grandes e boas, que pode nos dar esta passagem pela crosta deste terceiro planeta depois do Sol (alguém conhece coisa além- Cartas à redação). Fazemos as coisas úteis para ter acesso a estes dons absolutos e finais. A luta do trabalhador por melhores condições de vida é, no fundo, luta pelo acesso a estes bens, brilhando além dos horizontes estreitos do útil, do prático e do lucro.
Coisas inúteis (ou "in-úteis") são a própria finalidade da vida.
Vivemos num mundo contra a vida. A verdadeira vida. Que é feita de júbilo, liberdade e fulgor animal.
Cem mil anos-luz além da utilidade, que a mística imigrante do trabalho cultiva em nós, flores perversas no jardim do diabo, nome que damos a todas as forças que nos afastam da nossa felicidade, enquanto eu ou enquanto tribo.
A poesia é u principio do prazer no uso da linguagem. E os poderes deste mundo não suportam o prazer. A sociedade industrial, centrada no trabalho servo-mecânico, dos USA à URSS, compra, por salário, o potencial erótico das pessoas em troca de performances produtivas, numericamente calculáveis.
A função da poesia é a função do prazer na vida humana.
Quem quer que a poesia sirva para alguma coisa não ama a poesia. Ama outra coisa. Afinal, a arte só tem alcance prático em suas manifestações inferiores, na diluição da informação original. Os que exigem conteúdos querem que a poesia produza um lucro ideológico.
O lucro da poesia, quando verdadeira, é o surgimento de novos objetos no mundo. Objetos que signifiquem a capacidade da gente de produzir mundos novos. Uma capacidade in-útil. Além da utilidade.
Existe uma política na poesia que não se confunde com a política que vai na cabeça dos políticos. Uma política mais complexa, mais rarefeita, uma luz política ultra-violeta ou infra-vermelha. Uma política profunda, que é crítica da própria política, enquanto modo limitado de ver a vida."

O indispensável in-útil
" As pessoas sem imaginação estão sempre querendo que a arte sirva para alguma coisa. Servir. Prestar. O serviço militar. Dar lucro. Não enxergam que a arte (a poesia é arte) é a única chance que o homem tem de vivenciar a experiência de um mundo da liberdade, além da necessidade. As utopias, afinal de contas, são, sobretudo, obras de arte. E obras de arte são rebeldias.
A rebeldia é um bem absoluto. Sua manifestação na linguagem chamamos poesia, inestimável inutensílio.
As várias prosas do cotidiano e do(s) sistema(s) tentam domar a megera.
Mas ela sempre volta a incomodar.
Com o radical incômodo de urna coisa in-útil num mundo onde tudo tem que dar um lucro e ter um por quê.
Pra que por quê?"

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

A pamonha de Cuíca não endureceu na Câmara

Cuíca de Santo Amaro nasceu em 19 de março de 1907, dia de São José, e por isso foi batizado José Gomes, no nº 16 da rua Ferreira França, sub-distrito de Santana, em Salvador. Mas há várias versões de que o poeta teria nascido em Santo Amaro da Purificação. Cuíca era o que alguns chamam de poeta popular, mas estava mais para cronista da vida social da cidade, com seus poemas de cordel vendidos pelas ruas da cidade. Foi propagandista de lojas, vendeu folhetos de outros, mas se imortalizou mesmo com seus versos mordazes. Do final dos anos de 1930 até sua morte, em 23 de janeiro de 1964, foi o boquirroto da primeira capital do Brasil, onde foi preso várias vezes por causa de seus escritos. Em 1958, candidatou-se a uma cadeira de vereador pelo PTB e fez um folheto anunciando a postulação:

"Como trovador
Cumpro o meu dever
Ao povo massacrado
Eu hei de defender
Goste quem gostar
Doa em quem doer.

Agora... se os meus amigos
Quiserem me eleger
Na Câmara Municipal
Muita gente há de ver
Que a pamonha
Ali tem que endurecer.

Lembre-se que Getúlio
Dizia ao trabalhador
Se eu estiver com saúde
Irei à Salvador
Fazer José Gomes
Cuíca Vereador."

Teve apenas 39 votos, mas qual dos compradores de suas trovas o elegeria para perder o poeta?

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Uma questão de prioridades...

Tudo ia bem durante a entrevista sobre a crise no Partido Social Democrata que o ex-premiê português Pedro Santana Lopes (foto) concedia ao Jornal da Noite, no estúdio do canal SIC Notícias, até a apresentadora Ana Lourenço interrompê-lo para chamada ao vivo do aeroporto da Portela, em Lisboa. Quem desembarcava era o treinador José Mourinho, que havia sido demitido do milionário clube inglês Chelsea. Entra no ar, então, um repórter tentando, durante três minutos, entrevistá-lo. O técnico não deu a mínima ao repórter e foi-se embora.
De volta ao estúdio, a apresentadora busca dar continuidade à entrevista, mas é surpreendida com a reação de Santana Lopes:
- Estávamos a falar...
- Sabes onde que estávamos? - retrucou Santana Lopes.
- Sei, estávamos a falar...
- E achas que esta interrupção se justifica?
- Vim aqui com sacrifício pessoal, chego e sou interrompido por causa de um treinador de futebol. Acho que este país está doido, desculpe dizer, com todo respeito, e, portanto, não vou continuar a entrevista. Acho que os senhores têm de aprender.
E foi-se embora, deixando estupefatos os jornalistas da tv portuguesa e os espectadores que puderam presenciar naquele momento não só uma lição de jornalismo, mas principalmente de respeito e de dignidade.
Confira o trecho da entrevista de Pedro Santana Lopes.

Reinvenção e abolição da superficialidade

O pior jornalismo que se pode praticar num jornal tem uma característica: a descrição de idéias simplistas, que se limitam à superficialidade do fato. A queda da audiência dos impressos, a meu ver, tem muito a ver com isso. A reportagem ligeira, que antes do advento da internet era praticada nos jornalões, ganhou espaço na web. Basta verificar as notícias mais lidas em sites como BBC [veja as top stories agora] ou CNN [most popular] e percebe-se que a audiência online prefere temas leves, com notícias que nem mereceriam estar na última página de um diário. Evidentemente esse "público digital" ainda está em fase de formação e esse quadro pode mudar em pouco tempo. No impresso, ao contrário, já há uma audiência formada por longos anos de estrada e continuamos a repetir fórmulas do passado. O jornalista ocupa-se mais hoje em dissimular a conjuntura que analisá-la com profundidade. Vejamos a capa da Folha de S. Paulo desta quinta (14.2.2008). Entre as chamadas, temos "Governo propõe alteração que deverá permitir supertele", "Novo líder tucano apóia candidatura de Alckmin em SP" e "Kassab proíbe charuto em bares e restaurantes". São todas notícias que estavam ontem no UOL. O pior é que a primeira apresenta um fato que se limita a uma proposição do governo e pode causar um fato futuro no setor das teles. E depois os jornalões reclamam da redução da audiência... Danton Jobim (foto), ex-presidente da ABI e senador da República, escreveu uma vez que se as sobras de uma edição fossem editadas dariam um novo jornal com notícias mais complexas, de "verdades que não se dizem ou não se devem dizer".
Um texto de Paulo Freire vem bem a calhar:

"Tu terás que reinventar e não só tu
como sujeito da reinvenção,
mas o outro com quem tu te encontras.
No fundo, viver é recriar.
É por isto que a recriação já não mais
nem vive, já é a existência"

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Ninguém quer dar nome aos bois...

Essa aconteceu em Portugal, mas não é piada. Acontece todo dia aqui no Brasil. A SIC, emissora de TV privada, fez duas reportagens. Na primeira, para checar a honestidade das firmas de informática, retirou um cabo de um PC que foi levado a várias lojas. Apenas uma foi honesta e religou o cabo sem cobrar. Na segunda, um pensionista foi lesado por uma empresa de seguros. A reportagem contou a história, mostrou como o pobre foi ludibriado. Tudo nos conformes do bom jornalismo. Mas na primeira reportagem não se informou sequer o nome da loja de informática honesta e na segunda ninguém ouviu o nome da seguradora. Pois, pois...

Karl Marx e o jornalismo no século 19

Karl Marx é tido como o mais conhecido cientista da filosofia política de todos os tempos. Seus textos foram utilizados para construir revoluções por todo o mundo, mas há um aspecto pouco conhecido de sua obra. Marx foi também um dos grandes correspondentes estrangeiros do século 19. Por 11 anos, a partir de 1852, escreveu para o New York Tribune. A Penguim Classicals lançou uma coletânea desses escritos, editada por James Ledbetter, com prefácio de Francis Wheen, com o título "Dispatches for the New York Tribune: Selected Journalism of Karl Marx" [vá no search inside da Amazon], com textos que abordam temas abundantes, como questões de luta de classes, de Estado e assuntos internacionais, com destaque para as desigualdades sociais, fome na Grã-Bretanha, escravidão e tráfico de ópio.

Desafios para novos e antigos jornalistas

O crescimento da internet e a explosão dos websites de informação, com a mídia tradicional ocupando o ciberespaço e o aparecimento dos blogs, alterou profundamente o "fazer" jornalismo. Mas o buraco da web é mais embaixo, porque o compartilhamento de formatos, interatividade e ampliação do horizonte da comunicação criou mesmo foi o desafio gigantesco da requalificação dos jornalistas mais antigos, que, por sua vez, vão balizar o trabalho dos mais novos. No início deste ano, a Federação Nacional dos Jornalistas britânicos (NUJ, na sigla em inglês) divulgou relatório de comissão criada para estudar as mudanças que se processam nas redações daquele país com as novas responsabilidades multimídia dos profissionais [baixe o PDF]. O desafio é do tamanho do problema e não há mágica que possa resolvê-lo. Há ainda a questão da formação nas universidades, onde o caminho parece ser mais suave. Criadas no ambiente do ciberespaço, as gerações recentes parecem mais aptas a lidar com as novas ferramentas do negócio da comunicação. O que lhes falta é experiência e formação dentro das redações, o que acontecia no passado com o acompanhamento de seu trabalho pelos editores e chefes de reportagem. Temos aí um problema e duas pontas.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Quem paga a conta escolhe o menu

A grande TV pública brasileira vem aí, empurrada pelo governo federal, mas será que ela será realmente pública? Para responder a essa questão é preciso entender que quem paga a conta do almoço de trabalho escolhe os pratos no cardápio. As relações no serviço público são como esses almoços que somos obrigados, às vezes, a freqüentar. Não é confraternização familiar, entre pai, mãe e filhos, em que o menu termina sendo ditado pelos pequenos. O maior exemplo de jornalismo independente e imperfeito do mundo vem da ilha da rainha Elizabeth. A venerável British Broadcasting Corporation, mas conhecida como BBC, do alto de seus mais de 80 anos, tem algo a ensinar. É independente do governo, apesar de sofrer pressões o tempo todo, porque foi criada para ser assim desde o início. Lá, quem paga a conta do almoço é o telespectador. Todo cidadão britânico que tem aparelho de TV recolhe uma taxa de 131,50 libras – cerca de R$ 450 – integralmente à BBC.

Borges, Bioy e o inimigo da censura

No livro "Nuevos Cuentos de Bustos Domecq", escrito a quatro mãos por Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares (foto), o conto "O inimigo número 1 da censura" relata o diálogo de dois personagens: o jornalista de Buenos Aires Bustos Domecq e o ex-editor literário de um jornal local, Ernesto Gomensoro. Tudo começa quando Domecq recebe uma carta do segundo convidando-o a participar de uma antologia. Encafifado com o convite, o jornalista, que nunca havia revelado a ninguém que escrevia literatura, procura Gomensoro, que tinha sido demitido do jornal por publicar os textos exatamente por ordem de chegada, para saber o porquê do convite. Descobre que o velho editor é contra a censura, qualquer censura, e havia convidado todos os nomes da lista telefônica da cidade a participar da grande antologia que queria organizar. Gomensoro é contra qualquer tipo de julgamento: do editor, do jornalista, do marqueteiro, enfim, de quem decide o que vai ser publicado. O jornalismo é a antítese de Gomensoro, pois escolhemos, hierarquizamos e somos semideuses com o poder de definir o que vai sair no jornal, no telejornal ou no website. Enfim, ao contrário do velho editor que publicava pela ordem de chegada, estamos mais sujeitos ao erro. E sempre erramos. Sem querer fazer apologia da Lei de Murphy, se podemos errar, vamos errar, com certeza. Para conviver com isso, é preciso calçar as sandálias da humildade.

Balzac e os "negociantes de frases"

Aperfeiçoar o imperfeito, parafraseando Gilberto Gil, é uma tarefa do jornalismo. Mas não é exatamente o que se vê nas redações cada vez mais multimídia atualmente. A antiga (não confundir antigo com velho, please) máxima de checar, checar e rechecar é coisa do passado, sem saudosismo. Nesta segunda-feira (11.2.2008) todos os telejornais em todas as redes de TV destacaram a morte das cinco moças em São Paulo, com ênfase no fato de que elas levavam uma caixa de cerveja no carro. Como arautos da verdade absoluta, chegaram à conclusão de que estavam bêbadas e morreram por isso. Não informaram qual o teor alcóolico no sangue, não checaram se o veículo tinha algum problema mecânico. Enfim, a suposição virou notícia. Em muitos outros casos, afirmações não checadas também se alçaram à condição de informação, como no famoso caso da Escola de Base, também em SP. Em "Ilusões Perdidas", Balzac é cruel com os jornalistas, chamados por ele de "negociantes de frases". Foi o que a TV repetiu no caso das moças: negociou frases para recriar a notícia e a embrulhou num papel de cores dramáticas bem ao gosto de uma audiência definida nas diretorias de marketing das empresas.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Se nada é perfeito, tudo é imperfeito

Jornalismo EmPerfeito é apenas uma janela, como as janelas das comadres no interior, que as usam para falar o que não é revelado. Inspira-se na literatura e na música para despir as máscaras do dia-a-dia. Como afirma Tom Zé (foto) na canção "Tô", de Estudando o samba, "Tô te explicando pra te confundir / Tô te confundindo pra te esclarecer / Tô iluminando pra poder cegar".